Mystici Corporis

Algumas pessoas têm a falsa impressão de que a horrível heresia pré-Vaticano II, catalogada na secção anterior, também foi ensinada pelo Papa Pio XII na sua encíclica Mystici Corporis. Isso não é verdade. A passagem de Mystici Corporis que os hereges amam citar é fraca, mas não herética. Traduzida correctamente, eis o que a passagem diz:

Papa Pio XII, Mystici Corporis, 29 de Junho de 1943, sobre os não-católicos: «[Nós esperamos] que cada um deles coopere generosamente e de livre vontade com os impulsos internos da graça divina e que cuidem de libertar-se a si mesmos daquela condição na qual não podem estar seguros da sua própria salvação. Pois apesar de eles poderem estar direcionados [ou ordenados] ao Corpo Místico do Redentor por uma espécie de desejo inconsciente e intenção, ainda lhes faltam muitos e tão grandes auxílios e ajudas divinas dos quais somente na Igreja Católica se pode usufruir.»1

Em primeiro lugar, esta passagem de Mystici Corporis tem sido incorrectamente traduzida por muitos com o intuito de enfraquecer e perverter as verdadeiras palavras de Pio XII. A frase (ab eu statu se eripere studeant, in quo de sempiterna cuiusque propria salute securi esse non possunt) que é correctamente traduzida por, «…libertar-se a si mesmos daquela condição na qual não podem estar seguros da sua própria salvação», fora incorrectamente traduzida por «procurem afastar-se daquele estado em que eles não podem ter a certeza da sua salvação.»2 Esta tradução errónea dá a clara impressão de que não-católicos têm uma chance externa de obter salvação no estado em que se encontram.

É interessante observar que mesmo o herege Mons. Joseph Clifford Fenton, defensor do Protocolo 122/49, admite que a palavra «certeza» está incorrectamente traduzida.

Mons. Joseph Clifford Fenton, A Igreja Católica e a Salvação, 1958. pág. 88: «Muitas das traduções publicadas de Mystici Corporis Christi empregam a expressão “em que eles não podem ter a certeza da sua salvação” na tradução desta cláusula para o inglês. Esta terminologia é tanto inexacta quanto gravemente enganadora.»3

Fenton prossegue dizendo que a tradução errónea dá a impressão de que os católicos podem ter a certeza da sua salvação, o que é uma heresia condenada pelo Concílio de Trento (Trento, Sessão 6, Cap. 9)

A outra parte da encíclica Mystici Corporis que foi incorrectamente traduzida por muitos com o objetivo de perverter as verdadeiras palavras de Pio XII, em latim: «quandoquidem, etiamsi inscio quodam desiderio ac voto ad mysticum Redemptoris Corpus ordinentur» fora erroneamente traduzida por muitos da seguinte forma: «Pois de maneira inconsciente, eles estão ligados em intenção e desejo ao Corpo Místico do Redentor…» Trata-se de uma tradução deliberadamente adulterada que modifica o significado das palavras de Pio XII. Cito o Ir. Robert Mary no livro Father Feeney and the Truth About Salvation para explicar o porquê de esta ser uma tradução incorrecta.

«Abusou-se da palavra ordinentur. No livro “Dicionário Latim-Inglês de São Tomás de Aquino”, por Roy J. Deferrari, encontramos o significado do verbo latino ordino: Ordino, are, avi, atum – (1) ordenar, pôr em ordem, organizar, ajustar, (2) desfazer...”.

«Como o Papa usa o modo subjuntivo para expressar uma incerteza futura e não um facto certo, a tradução deveria ser:

«“Pois, apesar de eles poderem estar dispostos ao [ou ordenados ao] Corpo Místico do Redentor, por um certo desconhecido desejo e resolução …”

«Por outras palavras, a única coisa que este “certo desconhecido desejo e resolução” (inscio quodam desiderio ac voto) pode fazer aos não-católicos é prepará-los para entrar na Igreja ou a ela retornar. O Papa não está de modo algum a dizer que eles estão “relacionados” ao Corpo Místico do Redentor, muito menos que estão “unidos a ele.”»4

O Ir. Robert Mary demonstrou de forma astuta como é falso dizer que o Papa Pio XII ensinou que alguns não-católicos estão «ligados» à Igreja por um desconhecido desejo, e que Pio XII certamente não ensinou que não-católicos estão «unidos» à Igreja. Porém, é assim que encontramos a tradução de Mystici Corporis em muitos livros e artigos, em especial naqueles escritos por padres que negam o dogma Fora da Igreja Não Há Salvação.

Enquanto que a importante observação acima confirma o quão errados estão os hereges modernos no seu tratamento de Mystici Corporis, não resta dúvida alguma de que a passagem de Pio XII acima ― mesmo se traduzida correctamente ― é pateticamente fraca, e abre a porta para os liberais hereges alegarem que Pio XII endossou a heresia de que os não-católicos podem ser salvos por pelo seu desejo inconsciente da fé católica. A fraqueza da passagem demonstra a mentalidade de um homem que permitiu que heresia contra o dogma da Igreja Fora da Igreja Não Há Salvação se espalhasse desenfreadamente nos seminários, nas obras teológicas e nos catecismos durante período em que reinou, ainda que ele próprio não a tenha ensinado explicitamente. Pio XII não deveria ter falado de um suposto desejo e intenção inconsciente dos não-católicos, mesmo considerando que ele não disse que tais pessoas poderiam se salvar. É notório que a mera menção de algo deste tipo faz com que os modernistas salivem como os cães quando avistam uma refeição apetitosa. O Papa Pio XII deveria ter-se referido aos não-católicos da mesma forma que o Papa Leão XII o fez; e ele deveria ter reafirmado ao modo do Papa Gregório XVI que não-católicos certamente perdem-se caso não possuam a fé católica.

Papa Leão XII, Quod hoc ineunte, n.º 8, 24 de Maio de 1824: «Dirigimo-nos a todos vós que ainda estais apartados da verdadeira Igreja e do caminho da salvação. Neste júbilo universal, uma coisa está em falta: que havendo sido chamados pela inspiração do Espírito Celestial e havendo quebrado todo laço decisivo, possais estar num sincero acordo com a Madre Igreja, fora de cujos ensinamentos não há salvação.»5

Papa Gregório XVI, Mirari vos, n.º 13, 15 de Agosto de 1832: «… os que não colhem com Cristo dispersam miseramente, pelo que perecerão infalivelmente os que não tiverem a fé católica e não a guardarem íntegra e sem mancha (Credo Atanasiano).»6

Uma vigorosa reafirmação do ensinamento católico acerca desse assunto teria eliminado qualquer pretensão das alegações dos hereges contra o dogma ao referenciarem a sua encíclica. Contudo, são dignos de nota estes outros pronunciamentos do Papa Pio XII:

Papa Pio XII, Mystici Corporis Christi, n.º 22, 29 de Junho de 1943: «Como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro da regeneração [baptismo de água] e professam a verdadeira fé.»7

Papa Pio XII, Mediator Dei, n.º 43, 20 de Novembro de 1947: «Com efeito, como o lavacro do baptismo distingue os cristãos e os separa dos outros que não foram lavados na água purificadora e não são membros de Cristo, assim o sacramento da ordem distingue os sacerdotes de todos os outros cristãos não consagrados.»8

Estes dois pronunciamentos acima refutam a ideia de que uma pessoa pode ser salva até mesmo por um desejo explícito de receber o baptismo, pois ambos confirmam que aqueles que recebem o sacramento do baptismo não são cristãos ou membros da Igreja. (Os que não são cristãos ou membros da Igreja de Cristo não podem se salvar).

João 15:6: «Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; depois enfeixá-lo-ão, lançá-lo-ão no fogo, e arderá.»

Na verdade, se considerarmos que a citação acima de Mediator Dei é magisterial (e portanto infalível), isto por si só já elimina qualquer teoria de baptismo de desejo, pois esta assevera que a distinção entre aqueles que receberam a lavacro do baptismo (e são membros de Cristo) e aqueles que não receberam a marca do baptismo (e consequentemente não são membros de Cristo) é tão nítida quanto entre os que se tornaram sacerdotes mediante ordenação e os que não o fizeram. Por outras palavras, de acordo com o pronunciamento do Papa Pio XII em Mediator Dei, dizer que alguém pode ser cristão ou membro de Cristo sem a marca do baptismo (que é o que a teoria do baptismo de desejo afirma), seria a mesma coisa que dizer que pode-se ser sacerdote sem ordenação.

Além do mais, como já citámos acima, em Humani Generis, no ano de 1950, o Papa Pio XII menciona directamente a heresia em curso contra o dogma Fora da Igreja Não há Salvação.

Papa Pio XII, Humani Generis, n.º 27, 1950: «Alguns dizem que não lhes é vinculativa a doutrina, a qual expusemos há poucos anos atrás numa encíclica e que está fundamentada nas fontes da revelação, segundo a qual o corpo místico de Cristo e a Igreja Católica são uma e a mesma coisa. Outros reduzem a uma fórmula sem sentido a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para se obter salvação eterna.»9

Nesta passagem, o Papa Pio XII está a condenar precisamente a heresia comum a todos os hereges dos tempos modernos que negam este dogma. Eles reduzem o dogma Fora da Igreja Não Há salvação a uma fórmula sem sentido ao dizer que este não quer dizer o que de facto diz!

É importante notar que embora o Papa Pio XII não tenha ensinado que não-católicos podem estar unidos à Igreja ou serem salvos por um «certo desconhecido desejo e intenção», se ele o tivesse ensinado, ele teria ensinado heresia ― uma heresia refutada por suas próprias palavras supracitadas. Como São Paulo nos diz, «Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um Evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema» (Gálatas 1:8). O problema do Papa Pio XII, contudo, não foi o que ele disse acerca do dogma, mas o que ele não disse, e mais especificamente, aquilo que ele deixou acontecer por negligência e silêncio (ou talvez por apoio directo) na questão do dogma Fora da Igreja Não Há Salvação e em relação ao Padre Leonard Feeney, S.J. O que o Papa deixou que acontecesse foi um crime tão monumental que não pode ser mensurado. O que ele permitiu que sucedesse transformou-se num escândalo de proporções incalculáveis para os fiéis e um impedimento para a salvação de milhares de almas, tanto durante o seu pontificado quanto para as gerações vindouras.